Idosa ‘escravizada’ em bairro nobre de SP ganha indenização de R$ 350 mil
A Justiça determinou que uma trabalhadora doméstica mantida em situação análoga à escravidão em uma casa na região do Alto de Pinheiros, área nobre da capital paulista, receba R$ 350 mil de indenização por danos morais. O montante deve ser pago pelos ex-patrões.
A decisão judicial foi confirmada pela 12ª Turma do TRT-2 (Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região) na última quinta-feira (17), quando também foi retirado o segredo de justiça do processo. A defesa disse que vai recorrer.
A mulher foi resgatada em junho de 2020 em uma operação do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Civil, depois de uma denúncia anônima feita por meio do Disque-100 da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
Além da indenização, a Justiça também determinou que ela tenha seus direitos trabalhistas reconhecidos, como a assinatura da carteira e o recolhimento de salários, contribuição previdenciária e FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviços).
Apesar de ter trabalhado para família desde o fim dos anos 1990, a idosa só pode receber os valores referentes ao intervalo entre 2015 e 2020 devido à regra da prescrição, que prevê uma limitação para cobranças antigas.
Somente os valores dos cinco anos anteriores à ação podem ser pagos. O reconhecimento do tempo de trabalho, para o direito à aposentadoria, por exemplo, é mantido, mesmo sem os pagamentos.
Para o juiz federal Jorge Eduardo Assad, relator do caso na 12ª Turma, os três ex-patrões –mãe, filha e o marido desta– não conseguiram provar que a mulher era apenas uma diarista, sem vínculo de longo prazo com a família, nem mesmo que ela era autônoma.
Em depoimentos, eles disseram que ela trabalhava também para outras pessoas na vizinhança e defenderam que não havia vínculo de trabalho.
Assad considerou que o depoimento da antiga empregada tornou a situação dos ex-patrões ainda mais grave. Ela teria dito que eles “não lhe batiam, eram amigos e a ajudavam”.
“Veja-se que, não estamos falando de uma situação normal de trabalho, mas de uma forma de submissão da pessoa ao talante [vontade] de outras que a explora, negando-lhes a condição de empregada e até de ser humano, na medida em que, as submete a uma condição definida por lei como análoga à de escravo”, escreveu no relatório.
Os três ex-patrões também foram condenados a pagar R$ 300 mil por danos morais coletivos, dinheiro que deve ser recolhido ao FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador). Os valores foram aumentados pelo TRT –na primeira instância, o dano coletivo havia sido calculado em R$ 100 mil, e o individual, em R$ 250 mil.
Somado à indenização para a empregada doméstica, os réus devem pagar um montante total de ao menos R$ 650 mil.
O advogado Ricardo Pereira de Freitas Guimarães, que representa a família no processo, diz que vai apresentar recurso contra a condenação. “Com todo respeito à decisão, entendemos que realmente não é um caso de trabalho análogo a escravo”, disse.
“As condições podiam não ser das melhores, mas ela tinha a chave, entrava e saia, não havia dívida [com a família]. Qual é a ausência de liberdade?”
Para ele, o valor total da condenação trabalhista é exagerado e “fora da curva”, uma vez que o valor será pago por pessoas físicas, e não por empresas.
Idosa vivia em depósito e dormia em sofá velho
Segundo o Ministério Público do Trabalho apurou na época do resgate, a mulher começou a trabalhar com a família em 1998 e permaneceu por 13 anos sem registro formal em carteira. Sem direito, portanto, a férias ou 13º salário.
A partir de 2011, ela foi morar em uma casa de uma outra pessoa da família, pois o imóvel em que vivia desabou. Continuou trabalhando como empregada, mas deixou de receber salário. Ela havia se mudado em 2017 para a casa de onde foi resgatada.
Lá, ela vivia em um quarto nos fundos do terreno, que funcionava como uma espécie de depósito, com cadeiras, estantes e caixas amontoadas. Um sofá velho era usado como cama e não havia banheiro.
Para a Justiça, a família admite que havia prestação de serviço somente entre 1998 e 2011 e somente como diarista. O depósito, a que eles chamam de edícula na ação, seria usado apenas eventualmente pela mulher para dormir. Segundo eles, ela não morava lá.
Para o juiz relator do caso, o histórico das relações entre a doméstica e a família foi se deteriorando ao longo dos anos. “Chegando a extremos, não apenas pelo pagamento de salário muito inferior ao mínimo, mas envolvendo a liberdade da obreira”, afirmou. (UOL)